Rinoceronte de Putin
Trump, o Populismo, o domínio das Elites, o conflito entre a ideia Liberal e os interesses da maioria , são as justificações de Putin para declarar que "o liberalismo Ocidental é uma ideia obsoleta".
Nada é inocente em Putin. Em pleno G20, o Presidente da Rússia declara que o “Liberalismo Ocidental é uma ideia obsoleta”. A referência do Czar revela um misto de cinismo e de ironia, mas assume-se que a ideia política do futuro será certamente a Autocracia Oriental em que a Liberdade é substituída pela Segurança. Curiosamente, o economista inglês John Hobson define o Liberalismo como o “Socialismo Praticável”, uma possibilidade estranha ao espírito de Putin. Num efeito não intencional, a cartografia política da declaração remete-nos para uma circunstância exótica, tão pessoal quanto casual, na grande e longa história do Liberalismo.
John Stuart Mill tinha por hábito encontrar-se de modo clandestino com a sua formidável amante, a brilhante feminista Harriet Taylor, junto à jaula do rinoceronte no Zoo de Londres. Para Adam Gopnick, o Liberalismo assemelha-se a um rinoceronte – “É difícil de amar. É divertido de olhar. Não é bonito, mas é um animal completamente bem-sucedido”. O rinoceronte de Putin é uma criatura política odiosa e arcaica que deve rapidamente assumir o seu devido lugar na galeria das ideias mortas pela História.
De onde vem este súbito diagnóstico de Putin sobre a ascensão e queda da grande doutrina dominante? A eleição de Trump, a profusão do Populismo, o domínio das Elites, o conflito entre a ideia Liberal e os interesses da esmagadora maioria das pessoas. Na leitura do Kremlin estas são as razões próximas e profundas para o declínio da Democracia Liberal enquanto forma de organização política e económica. De certa forma, nesta narrativa o Socialismo nunca existiu, não deixou descendência política, nem entre os netos e os bisnetos de uma geração de zelosos ideólogos e cientistas políticos. Putin é a representação do revisionismo político e a consciência do espírito de uma Rússia Histórica na afirmação de um lugar entre as Grandes Potências no Concerto das Nações.
Mas Trinta anos após a Queda do Muro de Berlim, o que vê Putin na imensidão da Europa então parte da esfera de influência Soviética? A Europa Central entregou-se abertamente a uma utopia do curto prazo, uma utopia suportada pela prosperidade económica e pela liberdade política, asseguradas e garantidas pela nova ordem estabelecida pelo domínio das Democracias Liberais. A presença física do Muro estabelecia declaradamente a fronteira entre a Europa de Leste, ocupada e dominada, e a Europa Ocidental, soberana e livre. Hoje, na ausência de uma fronteira física, as duas Europas têm uma continuidade geográfica, mas continua a prevalecer a distância histórica, cultural e política, que enfatiza sobretudo as diferenças em detrimento dos progressos. As duas Europas continuam separadas pela esperança das promessas não cumpridas e pelas dificuldades esquecidas numa época de euforia. Trinta anos depois do Muro, as duas Europas são duas partes distintas de um animal político por construir, que se perguntam de onde vêm e para onde vão, mas que não sabem nem uma coisa nem outra, e são incapazes de provar que tudo não passa de um grande sonho político que continuam a confundir com a realidade. A Democracia Liberal sofre uma profunda erosão em todo o espaço político da antiga Europa de Leste. Por um lado, são as forças do Grande Desencanto Liberal que alimentam o levantamento Populista tão intenso e profundo que, em certos momentos, remete o analista para as convulsões dos anos 30 do século passado. Por outro lado, são as convicções revivalistas concentradas na Novidade da Nostalgia Socialista, um momento em que a História parou na crença de uma Idade de Ouro no hino dos Amanhãs que Cantam. É o clássico confronto entre a Liberdade e a Segurança, entre as desilusões da Liberdade e as ilusões da Segurança.
A Europa Central não passou pela experiência de uma Comissão de Reconciliação, tendo o passado Socialista ficado adormecido nos cofres dos arquivos para utilização como arma política. A Europa Central não absorveu a ideia de que a Democracia Liberal não é um status quo, não é a supremacia de uma nomenklatura, mas um processo constante e contínuo que não se resume exclusivamente ao progresso material. Os valores da Europa Central e os valores da Europa Ocidental não se encontram na definição de uma entidade política homogénea na diversidade e coerente na mentalidade. Esta talvez seja a nova utopia do longo prazo, uma preocupação política permanente, mas uma impossibilidade Histórica permanente.
Putin é o protagonista político activo entre os dois rostos da Europa que, como Janus, uma face reflecte o passado e a outra face contempla o futuro. Na descontinuidade do presente estas duas Europas não se descobrem. Para Putin, as duas Europas ocupam duas celas brancas contíguas e persistentes nas grandes prisões psiquiátricas soviéticas. Ao contrário do Ocidente, Putin sabe que a distância que separa Varsóvia de Moscovo é exactamente igual à distância que separa Varsóvia de Bruxelas. A morte da Democracia Liberal é o sinal de que a História retoma a estrada que vai de Varsóvia para Moscovo.
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